Mais um sábado e, após interregno, de volta a coluna "Sobretudo", assinada pelo publicitário Affonso Romero.
Hoje o tema é a conduta dos meninos do Santos, que vem galvanizando o país. Confesso que discordo de alguns pontos, mas o Ouro de Tolo é um espaço dedicado ao contraditório.
"Esporte não é palhaçadinha
A sensação do primeiro semestre do futebol brasileiro é o jovem e talentoso time do Santos. Contando com a coragem do técnico Durval Junior, a equipe é armada para jogar para a frente e conta com jogadores habilidosos e criativos recém-saídos dos juniores como Neymar, Paulo Henrique Ganso e André, além do astro Robinho, com as mesmas características técnicas.
Foram campeões paulistas sobrando na primeira fase da disputa, passando com certa tranqüilidade pelo São Paulo na semifinal e disputando jogos finais duríssimos contra o modesto, mas bem montado, Santo André.
Tudo estaria muito bem, e esta deveria ser uma novidade alvissareira para o cada vez mais fechado, feio e morno futebol mundial. Entretanto...
Bem, o problema começa quando a superioridade e a ousadia no uso dos recursos técnicos resvala na molecagem e no desrespeito ao adversário. Jogar sem maiores preocupações defensivas pode ser apenas ousadia e agressividade tática, mas o time santista dá sinais de que isso é muito mais um reflexo da sua despreocupação com o aspecto competitivo.
Como assim, se a equipe acaba de se sagrar campeã? Será que isso, por si só, não prova a validade de sua postura em campo? Adiante veremos que talvez não. Provavelmente, não.
O time santista andou fazendo gols no atacado, em alguns jogos atropelou adversários em clara desvantagem técnica com uma enxurrada de gols. Isso é bom, demonstra vontade de brilhar e, até certo ponto, compromisso com o resultado. Muito melhor um time que continua jogando em busca do gol mesmo depois de abrir boa vantagem, que outros que tocam a bola debochadamente e partem para firulas gratuitas. E o time santista se destacou por buscar sempre o gol, continuar jogando em direção ao gol, em velocidade, cheio de recursos, mesmo depois de já ter a vantagem no placar. E a maior parte das jogadas de efeito, mais que firulas, foram reflexo da inventividade em prol da busca de espaços e soluções na caminhada em direção à meta adversária.
O caldo santista começou a desandar na hora de comemorar os gols. Comemoração é explosão de alegria, congraçamento com a própria torcida. Provocação só se admite como resposta a pancada ou provocação anterior do time ou torcida adversários. Fora isso, é fanfarronice.
E logo logo os moços da Baixada começaram a dar demonstrações desta fanfarronice. Era um tal de reboladinha para cá, trejeito para lá, coreografia abusada... aliás, parênteses para a coreografia: o sujeito gastar algum tempo da vida bolando uma forma de comemorar os gols que virá a fazer é, para dizer pouco, o prenúncio do desrespeito ao oponente. E se não fizer o gol? Ensaiar a comemoração é quase que como jogar na cara alheia a certeza de que o gol sairá, a vitória será certa. Isso é pretensão da pior espécie. É como a bailarina que, antes mesmo de bem dançar, ensaia o agradecimento aos aplausos.
É até fácil soterrar de gols as babas das primeiras fases da Copa do Brasil. Também não é raro aplicar duros golpes em uma ou outra equipe que frequente a rabeira da tabela do Paulistão. Mas, a bem da verdade, a meninada abusada dava conta também de jogos teoricamente mais duros, apesar de demonstrar a natural dificuldade contra os grandes clubes e contra equipes médias bem postadas em campo. Ou seja, alguns ensaios foram dedicados a gols que, na prática, não aconteceram.
Contra o instável Palmeiras, um jogo daqueles em que o Santos contava definir o placar na hora em que bem entendesse. Como acontecia com o mitológico time liderado por Pelé, dariam conta de levar 2 gols por pura negligência defensiva e, sem dificuldade, virar o jogo com 3 gols de puro talento? Não foi bem assim e veio a inevitável derrota.
Aprenderam alguma coisa? Não, continuaram a jogar sem responsabilidade tática, como um time de pelada da turma da rua onde, por feliz coincidência, o destino pôs para morar um grupo especialmente brilhante de atacantes.
E, entre declarações inoportunas, tietagem explícita da imprensa e mais coreografias, chegaram até a final de um Campeonato Estadual esvaziado contra um clube de tradições modestas, mas que também fez um campeonato eficiente e ofensivo, se bem que com muito menos talento e bem mais disciplina tática: o Santo André.
No primeiro tempo do primeiro jogo, levaram um vareio de bola. Fosse o time do ABC dotado de mais recursos e tradição, o campeonato teria sido colocado na lixeira em 45 minutos. Entretanto, uma boa bronca do técnico Durval Junior colocou a ordem lógica de novo dentro de campo e os meninos jogaram o suficiente para saírem com a vantagem de 3x2. Como fizeram a melhor campanha na primeira fase, foram para o jogo final com a vantagem de poderem perder por até o mesmo um gol de diferença, apesar do susto.
De passagem, jogaram mais um jogo sem preocupação defensiva, este pela Copa do Brasil contra o Atlético de Luxemburgo em pleno Mineirão, e saíram de lá com mais uma derrota de pelada de rua.
E aprenderam alguma coisa? Não, novamente não.
No último jogo do Paulistão, entraram em campo com o mesmo salto alto de sempre. Autosuficiência impressa em seus rostos. Sem concentração, levaram um gol em segundos. Mostraram o talento de sempre, empataram o jogo por duas vezes. Ainda assim, o primeiro tempo terminou com a vantagem andreense: 3x2. O placar do primeiro jogo, invertido o lado, mas que ainda dava o título ao Santos.
O Santo André teve um gol mal anulado. O jogo, que deveria ter sido fácil, tornou-se tenso e violento. Expulsões justas abriram espaços em campo. A cada lance, mais firulas desnecessárias e provocações.
No segundo tempo, ainda mais firulas, provocações e, por fim, um triste esboço de time talentoso segurando a bola, fugindo do jogo, fazendo cera, envergonhando sua própria conquista. Até que, aos 45 minutos, o Santo André carimbou sua segunda bola na trave santista.
Era como se os Deuses do futebol avisassem: desta vez, nós estamos ao lado do talento, então vocês serão campeões. Mas cuidado: o esporte não é palhaçada. Vocês poderiam ter posto tudo a perder. Foram campeões derrotados no último jogo por uma equipe bem inferior. Por duas traves e um erro grosseiro da arbitragem, não perderam o título. Muito pouco para quem espera ter encantado o Brasil.
E fica a explicação: não vão à Copa, apesar do talento e da beleza das jogadas. Era o Campeonato Paulista, e a derrota por 3x2 serviu. Fosse a Copa do Mundo, e uma derrota no último jogo valeria a perda do título. Lugar de brincar não é dentro de um campo sério de competição e diante de um adversário que deve sempre ser dignificado.
Para ficar na analogia mais imediata, vi esta semana a polêmica luta do UFC entre o extraordinário Anderson “ Spider” Silva e o disciplinado Damien Maia. O Aranha venceu com as sobras de seu talento e velocidade indiscutíveis e aparentemente insuperáveis. Mas, por alguma razão obscura, o grande campeão resolveu, no meio da luta, brincar no octógono. Desfez do adversário, provocou, rebolou, fugiu do confronto aberto, xingou, gesticulou, provocou gratuitamente. Enfim, baixou-lhe um misto de Robinho e Neymar do vale-tudo.
A reação da platéia (tanto ao vivo quanto via satélite, ao redor do mundo das lutas) foi a demonstração do fosso que separa o futebol dos outros esportes. O grande campeão Aranha foi implacavelmente vaiado, apesar da vitória incontestável e de sua ampla superioridade técnica. Afinal, a tênue linha que separa o UFC do velho circo do tele-catch é a dignidade e o respeito às artes marciais e seus princípios.
A luta do Aranha equivalia, em tudo, às reboladinhas de Robinho, Neymar e Cia. em suas comemorações coreografadas. E, ao final, Aranha e Santos confirmaram o favoritismo e foram campeões. A diferença é que, para recuperar o prestígio e o respeito, o Anderson Silva teve que pedir desculpas públicas aos fãs e ao adversário. Enquanto isso, a irreverência dos garotos da Vila faz deles os heróis do momento.
Desculpem, mas discordo: esporte não é palhaçada."
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