Mostrando postagens com marcador Política. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Política. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Sobre a Redução da Maioridade Penal


No último sábado, enquanto aguardava o início da apresentação das minhas filhas no balé, travei um debate pelo Twitter com o Major da Polícia Militar carioca Luiz Alexandre - que deu ótima e indispensável entrevista a este blog em ocasião passada - e a jornalista especializada em segurança pública Cecília Oliveira. O tema? Redução da maioridade penal.

A jornalista publicou ótimo artigo sobre o tema em seu blog "Arma Branca", elencando alguns aspectos deste debate - sobre os quais discorrerei ao longo deste post. Por seu turno, o Major argumentava, não sem razão, que não era o "badalar da meia noite" do dia em que o menor faz 18 anos de idade. Ou seja, o fato de um indivíduo ter 17 anos e 364 dias ou 18 anos e 1 dia em termos práticos não deveria diferençar o tratamento a ser dispensado.

Recentemente a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados deu parecer favorável à Proposta de Emenda Constitucional 33/2012, que reduz para 16 anos a maioridade penal nos casos de crimes hediondos, tráfico, tortura, terrorismo e reincidência dos crimes de roubo e lesão corporal grave.

Sem dúvida, o senso comum, inflado pelos jornalistas sensacionalistas das televisões e rádios, é de que a denominada "delinquência juvenil" é um grave problema social brasileiro. A toda hora vemos na imprensa notícias envolvendo menores infratores, seja cometendo crimes ou, então, servindo ao tráfico de drogas nas grandes cidades.

Entretanto, de acordo com dados disponibilizados pela jornalista no artigo (pesquisa da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal), existem 60 milhões de adolescentes entre 12 e 17 anos no Brasil. Dentre estes, aproximadamente 60 mil cumprem algum tipo de pena sócio-educativa, sendo 18 mil em regime fechado e 42 mil sem privação total de liberdade. Ou seja, para cada 10 mil adolescentes, 8,8 possuem algum tipo de restrição de liberdade.

Informo ao leitor, também, que o estado de São Paulo concentra praticamente um terço dos internos em regime fechado, tendo aumentado este tipo de medida "corretiva" nos últimos anos. Fazendo um parêntese, este é um bom exemplo de diferencial de políticas públicas entre as duas principais forças partidárias e programáticas brasileiras. Fazendo um segundo adendo, os recentes problemas de segurança que estão ocorrendo no estado me parecem indicar que encarcerar ou executar indiscriminadamente criminosos - ou tidos como tal - não parece ser a melhor forma de lidar com o tema.

Por outro lado, o argumento operacional do Major também deve ser levado em conta: para quem está na rua como força policial, estar com 17 anos e 364 dias ou 18 anos e 1 dia não vai fazer muita diferença na hora de efetuar eventuais prisões. Não muda a maturidade ou o destino da pessoa o corte temporal - embora algum tipo de critério, na visão dele, tenha de ser aplicado.

Outra questão que se necessita avaliar é o padrão carcerário brasileiro. Hoje as cadeias brasileiras funcionam muito mais como uma espécie de "Universidade do Crime": na esmagadora maioria dos casos o sujeito entra devido a um crime de menor grau e acaba saindo integrado a quadrilhas ou "doutrinado" para cometer crimes de maior gravidade. São "depósitos de pessoas" onde a ressocialização acaba sendo apenas marginal, com o perdão do trocadilho.

Ou seja: vale a pena enviar jovens de 16 ou 17 anos para os presídios brasileiros sabendo-se que estarão entrando em um caminho sem volta? Não sou psicólogo, mas esta é a fase final de formação do indivíduo e, me parece, mandá-los para cadeias "adultas" os estará colocando em um caminho sem volta. Destarte, deve-se levar em conta a influência que a diminuição do desemprego nos últimos dez anos teve na redução dos índices de criminalidade - e para um menor infrator é muito menos complexo encontrar um emprego, ou ainda se qualificar, que um ex-presidiário.

Lembro ao leitor que no total de menores cumprindo medidas de restrição ou privação de liberdade existem 1,6 mil homicidas - 2,6% do total de jovens infratores. Este é o número envolvendo jovens de 12 a 17 anos, ou seja: diminuir a idade da maioridade para 16 anos teria influência ainda menos da "diminuição da criminalidade" - sim, entre aspas.

Mais um fator que deve ser levado em conta é o corte social: infratores de maior renda tendem a ter melhor assistência e, assim, escaparem de prestar contas à sociedade. Isso gera um fator de injustiça na sociedade: pobres irão para o presídio, ricos para as colunas sociais.

Talvez, ao invés de se diminuir a idade para maioridade penal, fosse mais efetiva a multiplicação de iniciativas como a existente aqui no Rio, fruto da parceria entre a Fundação Mokiti Okada e o Degase. Os internos da unidade da Ilha do Governador tem oficinas como a de agricultura (foto) e outras áreas técnicas, além de se fazer um trabalho social com as famílias dos menores infratores. Esta iniciativa vem trazendo ótimos resultados na ressocialização destes menores.

Finalizando, há que se criticar a postura de uma imprensa sensacionalista em busca da audiência fácil. Na prática, isto acaba desinformando as pessoas - 86% da população apóia a redução da maioridade penal. Nas palavras da jornalista Cecília Oliveira:

"Vingança. Esta é a palavra que tem regido o direito penal no Brasil. Muitas vezes se vê uma pena descabida e muitas vezes até inconstitucional, mas que cale a boca da imprensa e por conseguinte, da sociedade. Quantas pessoas estão há anos cumprindo pena sem terem sido, sequer, julgados? Eles são 44% do sistema carcerário. Mas e os efeitos disso? Não interessa. São os outros."

Sem dúvida, esta é uma questão que necessita de um debate sério e sereno por parte de toda a sociedade. Bravatas, vingança e audiência fácil são posicionamentos que, apenas, levarão a decisões equivocadas. Precisamos nos apoiar nos números e na realidade a fim de se obter medidas que realmente aumentem o bem estar como um todo.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Maquiavel, Hobbes e a sociedade brasileira

Na última semana causou grande celeuma a disposição do Supremo Tribunal Federal de cassar por conta própria os mandatos dos parlamentares condenados no escândalo do Mensalão. Em flagrante desrespeito à Constituição, a instância máxima do Judiciário debate se pode interferir em outro poder, desrespeitando o princípio de independência entre os poderes.

Lembro aos leitores que isto não é novo. Em diversas situações o Supremo Tribunal Federal legislou no lugar do Congresso Nacional, em clara interferência sobre as atribuições do Congresso Nacional. Posso listar como exemplos as questões da união civil entre pessoas do mesmo sexo ou o aborto dos anencéfalos, ambas abordadas neste espaço em ocasiões anteriores.

Embora tenham sido decisões aplaudidas pelos formadores de opinião, representaram clara interferência de um poder constituído sobre outro, em flagrante desrespeito à Constituição.

Desta vez há um claro conflito de interesses, pois o Congresso Nacional, na figura do presidente da Câmara de Deputados Marco Maia, deixou claro que a prerrogativa de cassar mandatos parlamentares é da instituição, não do Supremo. Entretanto este tende a decidir pela cassação automática dos mandatos de parlamentares condenados, a meu juízo em flagrante desrespeito à Constituição.

Entretanto, este não é o tema principal deste post. Até porque não sou jurista, sequer advogado, então não tenho como dar uma opinião abalizada sobre o assunto. Digo apenas que, no meu leigo entender, a competência para cassar ou não parlamentares é unica e exclusivamente do Congresso Nacional.

Meu objetivo aqui é analisar as reações de formadores de opinião a esta decisão do Supremo Tribunal Federal, e sua relação com dois importantes teóricos da ciência política, Thomas Hobbes e Maquiavel.

No dia em que a celeuma teve destaque, inúmeras pessoas nas redes sociais defenderam a tese de que o mais importante era o fim alcançado. Ou seja, não importava se a Constituição tivesse sido rasgada, o que importava era que políticos (pretensamente) corruptos haviam sido punidos. Os fins sobrepondo-se aos meios.

Isso remete irremediavelmente à teoria de Maquiavel, que tem este mote como tema. Em uma simplificação grosseira, para o teórico italiano não importam os meios a serem utilizados, desde que o resultado final seja o pretendido. Não importam as regras ou as leis, o que realmente é primordial é alcançar o objetivo.

Por conseguinte, o pensamento destes extratos da sociedade demonstra desrespeito às leis ou a defesa de que seja ignorada em nome de um "bem comum". Mas quem define este bem comum?

Mal comparando, a versão brasileira da teoria de Maquiavel é a denominada "Lei de Gerson". Intitulada a partir de um comercial dos cigarros Vila Rica com o então jogador e hoje comentarista Gerson, tinha como mote o final do comercial: "o importante é levar vantagem".

Mais do que nunca a "Lei de Gerson" está enraizada na sociedade brasileira. Cada vez mais os segmentos formadores de opinião assumem posturas de juízes, censores e críticos, sempre em busca de "um objetivo justo".

Falo dos aplausos à postura do STF de cassar parlamentares, ainda que rasgando a Carta Magna do país. Mas outro bom exemplo é a aprovação da maioria da população às políticas de extermínio adotadas por várias Polícias por todo o país. O epíteto "bandido bom é bandido morto" confere à força policial poderes de Polícia, Justiça e carcereiro em questão de minutos. Isso é perigoso.

O mesmo policial militar que "mata bandidos que não merecem viver" pode exigir propinas em uma blitz, por exemplo, e assassinar você leitor ou eu blogueiro apenas por seguir a lei, ou seja, não pagar a propina exigida.

Mal comparando, é o que está ocorrendo no Supremo. Hoje cassam deputados, amanhã retiram do cargo uma Presidente eleita pela população, sob argumentos tênues. Aconteceu algo parecido no Paraguai, e a oposição e especialmente a mídia defendem algo do gênero aqui no Brasil. O discurso é que "para tirar o PT do poder, vale tudo. Até rasgar a lei"

O leitor entende onde quero chegar?

Outra tendência que este tipo de postura "maquiavélica" vem demonstrando é que a sociedade brasileira atualmente em muitos momentos reflete de forma clara a teoria do cientista político Thomas Hobbes (1588-1679). Novamente simplificando, sua teoria versa que o homem é intrinsecamente anti-social e somente se move por desejo ou medo. A sociedade hobbesiana seria uma guerra de todos contra todos, outra vez estabelecendo uma redução grosseira.

O que vemos na sociedade brasileira hoje é uma verdadeira guerra, onde somente vale o bem individual e seu benefício sobrepondo-se e prevalecendo ao bem comum. De certa forma o ódio que parcelas mais elitistas da população sentem pelos governos do PT tem a ver com isso: as políticas distributivas de Lula e Dilma tiram a sensação de "exclusividade" e "vitória" das classes mais abastadas.

Ou seja, é um "salve-se quem puder". 

Pessoalmente, sou um radical legalista. Os objetivos finais podem ser muito nobres, mas se não está estabelecido na lei, sou terminantemente contra. Muitas ditaduras surgiram deste conceito enraizado de que um fim "nobre" justifica qualquer conduta. E exatamente por isso que acompanho com muita preocupação este ativismo do nosso Judiciário, ainda que aplaudido por parte da população.

Finalizo com um poema do grande dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956):

"Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo."

É isso. Ativismo sim, mas acima de tudo, respeito às leis.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Templo Negro em Tempo de Consciência Negra


Antes de passarmos ao assunto do dia, peço desculpas aos leitores pela ausência de textos de minha autoria nos últimos dias. Venho enfrentando uma série de problemas pessoais, especialmente de ordem profissional, e com diversos afazeres concorrendo por tempo.

Mas este Ouro de Tolo é plural, é uma construção coletiva e os colunistas mantêm o pique com textos de alta qualidade. Certamente os leitores não sentiram a menor falta dos posts de minha lavra.

Esclarecimento efetuado, vamos ao nosso tema de hoje, feriado aqui no estado do Rio de Janeiro

20 de novembro, Dia Estadual da Consciência Negra.

Este feriado é comemorado marcando o aniversário de morte de Zumbi dos Palmares, tido pela historiografia oficial como um dos grandes mártires da luta pela liberdade negra. Pesquisas mais recentes indicam que o Quilombo dos Palmares era mais semelhante à organização social africana que propriamente um lugar igualitário, como transcrito e divulgado através dos séculos.

Estas pesquisas mais recentes indicariam até que havia escravos no Quilombo. Entretanto, não é este o ponto central de hoje.

Até porque lá se vão mais de quatro séculos...

Este texto de hoje, mais do que comemorar ou dissertar, pretende refletir. Escrevi post sobre o assunto em julho a partir da observação de que no colégio onde minhas filhas estudam praticamente não há negros em posição de aluno ou pais de alunos – somente em posições empregatícias subalternas. Contudo não pretendo retomar o mote daquele artigo, que pode ser visto neste link.

Oficialmente, os escravos foram libertados em 13 de maio de 1888. Mas as relações de trabalho, em especial aos mais pobres, à época pouco se diferenciavam apesar da 'liberdade' conquistada. Na prática, houve alteração na forma de organização de produção. Alguma liberdade, verdade, mas restrita.

A escravidão formal passou a ser a servidão pelo trabalho – ou a falta de. Os baixos salários substituíram o documento de posse formal, tornando tudo um mundo de “faz de conta”: o direito de ir e vir por parte dos então escravos passou a ser limitado pela falta de recursos financeiros, grosso modo.

No Brasil, o trabalhador só passou a ter alguma liberdade após a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada no governo de Getúlio Vargas. Neste momento havia uma movimentação mais livre por parte dos empregados no sentido de transitar entre empregos diferentes, até porque os Anos 50 e 60 foram as décadas do grande salto de industrialização brasileiro.

A evolução salarial e de emprego – a primeira particularmente – foram bem afetadas no período da ditadura militar, com políticas compressoras de salário e que aumentaram a concentração de renda no país, Isso apesar do período conhecido como “Milagre Econômico”, onde o país cresceu mas a renda não foi dividida.

Parêntese: chega a ser curioso ver o então Czar da Economia Delfim Netto, que dizia “primeiro crescer o bolo da economia para depois dividi-lo” hoje defendendo posições keynesianas no campo econômico e social-democratas na política. Nos dois momentos históricos, com bastante competência - sejamos justos.

Para o negro, em especial, o conceito de liberdade ainda pode ser considerado bastante relativo. Quando vemos a sociedade e percebemos que ainda hoje há extrema dificuldade de inserção nas camadas mais altas da sociedade, notamos como ainda há muita coisa a ser feita, em que pese progressos visíveis ocorridos na última década.

Vale dizer que material da revista inglesa “The Economist”, reproduzido na revista Carta Capital há três semanas, aponta o Brasil como um dos países que mais diminuiu a concentração de renda na última década. Esta concentração é medida por um indicador denominado “Coeficiente de Gini” ou “Índice de Gini” que, embora ainda tenha bastante a avançar, teve no caso brasileiro evolução significativa na última década.

O sacrifício – ainda que simbólico - de Zumbi e outros mártires da causa negra valeu a pena ?

Sem dúvida alguma, a cultura negra hoje é mais aceita que no início do século passado. Contudo houve a necessidade de um processo de aculturação, adaptação, mitigação de seus costumes, sua cultura e suas crenças.

Como bons exemplos deste fenômeno, podemos citar a religião e o samba. Ambos passaram por um processo de aculturação - e, em certos casos, de dominação e perda de controle sobre o fenômeno.

Por outro lado, lastima vermos, em pleno Século XXI, manifestações de racismo latentes e explícitas. O preconceito é praga que não se findou. A própria estátua de Zumbi aqui no Rio, volta e meia, é vítima deste estigma com pichações e vandalismo.

Também escrevi no artigo anterior que o racismo no Brasil é disfarçado, não explícito. E por isso mais difícil de combater, até porque a fronteira entre o politicamente correto – que é outra praga – e o racismo é muito, muito tênue.

A "consciência negra" deve ser empregada na luta por oportunidades iguais, por empregos iguais, pela não-discriminação. Este é uma luta de todos nós, brasileiros. Por outro lado o raciocínio de que a discriminação social no Brasil é social, não de cor, é apenas parcialmente válido. Explico.

Sem dúvida alguma existe um preconceito de classe muito forte, com uma parcela da sociedade adotando posições conservadoras, quase fascistas, como reação à ascensão social da denominada “nova Classe C” – basta ver alguns comentários que vem surgindo aqui mesmo em posts sobre política.

Contudo, quando observamos a composição das classes, o percentual de negros nas Classes A e B é muito, muito menor que a observada nas Classes D e E. Obviamente, como se percebe no início deste post, são condições que ainda remontam aos tempos da escravidão e à herança advinda desta.

É curioso se perceber que junto à evolução econômica e social ocorrida nos últimos anos percebe-se uma guinada conservadora por parte da sociedade. Acredito que seja uma espécie de autodefesa daqueles que ascenderam a fim de não perder o que conquistaram a duras penas.

Este raciocínio explica duas coisas: primeiro, o voto no PT – existe a percepção de que a oposição defende os interesses econômicos dos ricos e da elite, somente. Segundo, a guinada reacionária em temas como aborto, homossexuais, direitos civis, liberalização do consumo de maconha e que tais – “turbinada”, talvez, pela crescente mistura entre política e religião a que assistimos hoje.

Acabei saindo um pouco do tema, mas a data de hoje é importante para refletirmos se realmente nossa sociedade possui um mínimo de igualdade entre negros e brancos e se realmente estamos combatendo esta praga odiosa chamada racismo. Também é dia de celebrar a cultura negra, enaltecê-la e divulgá-la em tudo de rico que tem.

Como fazia Candeia (1935-1978), grande compositor portelense e árduo defensor da cultura negra – na foto, com Martinho da Vila em algum momento da década de 70. Infelizmente Candeia partiu muito precocemente, vítima de complicações causadas pelos tiros levados em uma briga de trânsito e que o deixaram paraplégico anos antes. Mas sua luta e sua genial obra ficaram. Viva Candeia e viva a cultura negra!

E já dizia o Salgueiro em 1989: "o Centenário não se apagará".

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Made in USA - "Eleições Americanas: pesquisas, resultados e estranhezas"



Nesta segunda feira, véspera de mais um feriado no Rio de Janeiro – embora eu esteja trabalhando, uma vez mais – a coluna “Made in USA”, do advogado Rafael Rafic, comenta como chegou à perfeita previsão das eleições americanas (chegando a acertar o número exato de delegados que cada candidato teria), feita aqui neste blog respectivamente dias 24 e 25 de outubro passados.

Além disso, o colunista tece críticas à imprensa local e manifesta estranheza quanto à divulgação de resultados das eleições.

Eleições Americanas: pesquisas, resultados e estranhezas

Depois de lançar em primeira mão no Ouro de Tolo os nomes de Arthur Zanetti e de Yane Marques como possíveis medalhistas olímpicos, o que se confirmou, fico muito feliz de dizer que mais uma vez antecipei ao leitor deste blog uma notícia: a do resultado da eleição presidencial americana.

Exatamente como previ aqui, Obama ganhou de Romney pelo placar de 332 x 206 no colégio eleitoral. Acertamos também o resultado em todos os cinqüenta estados americanos - inclusive os nove “campos de batalha” que, segundo a imprensa americana, estavam indefinidos.

O mais impressionante, até para mim, foi a acurácia em prever os cenários eleitorais e as diferenças de voto entre os dois candidatos. Todos os nove cenários previstos anteriormente nos “campos de batalha” anteriormente ‘foram na mosca’.

Mas como se conseguiu isso?

Sou um grande matemático que criou um programa que consegue prever o resultado das eleições?

Claro que não. Se fosse isso já estaria divulgando meu programa e vendendo vários exemplares de um livro, tal qual o Nate Silver (colunista matemático do The New York Times), que se vangloria de ter criado um software que consegue prever os resultados de cada estado americano. Ele fez isso em 2008 e repetiu a dose em 2012.

Não obstante, agora ele afirma que esse software é a Pedra de Roseta para o mundo e contem soluções para coisas completamente diferentes. Até a escolha de jogadores para o baseball e para o futebol americano.

Sou um grande analista político, um talento que a CNN está desperdiçando? Também não, apesar de adorar fazer essas análises amadoras como hobby.

Então eu apenas tive uma sorte absurda e por sorte acertei tudo? Também não.

Apenas se analisaram números, combinados com meu conhecimento das características do pensamento de cada estado. E o principal: não menti aos meus leitores sobre o que vi, tentando criar um clima de indefinição apenas para vender jornais e obter audiência.

Para explicar, mostrarei como se chegou a cada um dos prognósticos dados. Mas antes, preciso explicar dois pressupostos das análises.

Primeiro: com a exceção de New Hampshire, todos os estados ditos “indefinidos” tinham milhares de pesquisas de opinião de institutos diversos (neutros, pró-republicanos e pró-democratas) que cobriam, semana a semana, um período de 2 a 3 meses.

Segundo: as pesquisas nacionais de intenção de voto (aquelas tão propaladas que davam os famosos 48% x 48%, 47% x 47%) quase nada ajudam no estilo de eleição americana. O que realmente importa é saber quem irá ganhar em cada estado. No máximo essas pesquisas conseguem captar alguma mudança mais profunda em todo o país que, às vezes, ajudam a entender uma mudança de cenário repentina em certos estados.

Esse último pressuposto é do conhecimento geral de todos analistas americanos. Então, por que eles dão tanta ênfase a essas pesquisas nacionais? Não sei.

Mas foi justamente essa ênfase que não os deixaram enxergar o óbvio: a vitória de Obama em momento algum após o segundo debate esteve sob perigo.

Por que se diz isto com tanta certeza? Vamos à análise estado por estado.

Para começar, o mais fácil: Iowa. Todas as pesquisas lá após o terceiro debate davam uma vantagem tranqüila para Obama: entre 6 a 8%. A margem de erro das pesquisas era, em média, de 6,6%.

Não foram uma ou duas pesquisas que apontaram isso, mas nove. As TVs americanas não previram esse estado antes por duas hipóteses: puro excesso de cautela ou apenas de propósito, para manter a aura de indefinição da eleição. A CNN até parecia indicar que mudaria seu mapa eleitoral na semana final para dar vitória de Obama em Iowa, mas as atenções se voltaram para o Furacão Sandy e nada foi feito.

Wisconsin também estava fácil. Todas as pesquisas apontavam Obama na frente. Algumas por muito pouco, outras fora da margem de erro até. Só que as pesquisas que indicavam uma corrida apertada eram de institutos historicamente pró-republicanos. Todos os neutros davam entre 51 a 53% para Obama.

Ou seja, era óbvio que Obama teria uma vitória tranqüila devido à “Regra Datafolha”. Esta é aquela que diz que ‘se no Datafolha Serra está perdendo de pouco é porque ele está perdendo de muito’.

No final deu Obama por tranqüilos 53% x 46%. Mais uma vez as TVs preferiram a via fácil da “indefinição” e não prestaram atenção ao pedigree dos institutos de pesquisa.

Em New Hampshire era necessário olhar para os arredores. Como eu disse, esse era o único estado com poucas pesquisas. Quando escrevi a coluna, só tinha uma, muito antiga, dando Obama na frente por absurdos 10%.

No dia anterior da coluna, já escrita, ir ao ar, saíram mais duas pesquisas de institutos respeitados, um dando apenas 2% de vantagem e outro 5% (ambos com margem de 6%). Mas não mudei de opinião e mantive firme minha crença em vitória fácil de Obama.

Como? Simples, na falta de pesquisas precisas, precisamos olhar dados periféricos relacionados.

Primeiro: quais são a história e demografia do estado? New Hampshire é um estado pequeno, de dois distritos. Era levemente democrata que nos últimos 25 anos deu uma leve guinada para a direta e se transformou em um estado indefinido.

Segundo: como estão as outras corridas eleitorais que ocorrem no estado? New Hampshire tinha um dado interessante, pelo qual mantive minha posição.

Nas duas disputas para o cargo de deputado, os democratas estavam tranquilamente na frente e ambas as candidatas eram mulheres. Para completar, o candidato democrata era pule de dez para ser o novo governador.

Se todos os outros candidatos democratas estão bem, sendo que as duas indicadas pelos democratas para a eleição de deputado eram mulheres (um eleitorado no qual Obama sempre foi bem), é altamente provável que Obama também esteja em boa posição no estado.

Dito e feito. No resultado final foram tranquilos 52% x 46%.

Não a toa, após o fechamento das urnas, esses três estados foram os primeiros “campo de batalha” a serem cravados pelas TVs americanas.

Elas não poderiam ter feito o que se fez neste blog e cravar esses três resultados antes até das eleições? Poderiam. Por que não fizeram? Porque tiraria a aura de indefinição da eleição.

Aí partimos para a famosa Ohio. Outro estado que estava apertado pelas pesquisas, e esse aperto era real, mas totalmente previsível também. Por quê? Justamente por sua mística, não faltavam pesquisas feitas em Ohio.

Tinham mais de 35 à minha disposição, com metodologias para todos os gostos. Mas todas as 35 concordavam que Obama estava entre 1 e 3% a frente.

Não precisa ser um matemático para saber que é praticamente impossível que todas as pesquisas, no meio de tantas e tão variadas, tenham errado exatamente da mesma forma a margem de erro.

A probabilidade de isso ocorrer é menor do que ganhar na mega-sena e só seria possível por algum erro metodológico demográfico geral, o que é sabido que, graças ao excelente censo americano, não existe.

Por isso se afirmou que Obama ganharia apertado, mas com uma folga razoável de 3%. No momento em que escrevo [N.do.E.: a coluna foi escrita no início da semana passada] o resultado está 50% x 48%, mas ainda faltam 10% dos votos a serem apurados e os faltantes, historicamente, são pró-democratas. Então, no final de tudo, devo acertar a margem de folga.

A mesmíssima metodologia que apliquei a Ohio foi utilizada em Nevada, sendo que lá eu sabia que Obama teria um apoio maior na região de Las Vegas. Dito e feito.

Ela também foi aplicada, em partes, em North Carolina para prever vitória de Romney. Aqui todas as pesquisas davam vantagem de exatamente 1% para Romney. Junte-se esse resultado com o histórico altamente republicano do estado e ficava fácil cravar uma vitória republicana aqui.

Como consolo, fica registrado que pelo menos em North Carolina a CNN (sozinha) previu a vitória de Romney com quatro dias de antecedência.

Colorado, Virginia e Flórida estavam mais difíceis e eram os únicos estados (junto com Ohio até) que realmente se aceitava a pecha de “indefinidos”. Aqui realmente o que valeu mais para o acerto foi o “feeling”.

Em Colorado, percebia-se que o momento de Obama era melhor e a arregimentação de eleitores latinos estava a todo vapor.

Como em eleições apertadas momento é tudo, apostei em Obama. Ao final foi exatamente um comparecimento maior do que o esperado em Denver (onde Obama triturou por 73% x 24%) que fez Obama ganhar por tranqüilos, 51% x 47%.

Na Flórida, a disputa estava muito acirrada e este Ouro de Tolo acertou uma vez mais ao dizer que os republicanos iriam sonhar em recontagem, mas desistiriam ao ver que tinham perdido no resto do país. Foi exatamente o que ocorreu.

A eleição na Flórida mais uma vez foi uma bagunça e terminamos o dia seguinte da eleição sem saber ao certo quem ganhou lá. Porém para sorte de todos, o resultado da Flórida pouco importou.

Finalmente, 4 dias após o fim das eleições, pode-se asseverar a vitória de Obama por muito pouco a mais do que 0,5% (o máximo para haver recontagem). Os números neste momento não são finais, mas a diferença deve ficar em 0,55%.

Mais uma vez valeu o conhecimento do estado. Sabia que Obama para ganhar deveria ter mais do que 60% dos votos do condado de Miami-Dade, o maior do estado e forte reduto democrata. Como as pesquisas indicavam que Obama teria 63% dos votos lá, imaginava essa vitória pequeníssima de Obama por ter feito o dever de casa. Ao final teve 62%.

Na Virginia, sabia que graças a uma avalanche de votos nos subúrbios da capital Washington (que pertence a esse estado), Obama teria diferença folgada, de 3 a 6%. Ao fim, a “avalanche” não foi tão forte, ficou em 57% x 41%, mas o suficiente para dar a Obama os 3% de vantagem.

Por fim quero registrar um ponto que passou despercebido por todos, tanto nos EUA, quanto no Brasil.

Em todos os estados mais disputados dominados em nível estadual pelos republicanos (Ohio, Virginia, Wisconsin, Flórida e até a Pennsylvania), os votos das áreas de reduto de Obama demoraram demais para serem computados.

Não raro, eles só começaram a ser computados depois de terminada toda a apuração nas áreas interioranas, mais favoráveis a Romney. Assim, o republicano passou boa parte da apuração na frente nesses estados - para ser ultrapassado no final.

Em Wisconsin chegamos ao absurdo da CNN confirmar a vitória de Obama quando Romney ainda estava 1,5% a frente na apuração, tamanha foi a demora em se contabilizar a região de Milwaukee, reduto pró-Obama.

Em Virginia a coisa desandou de modo ainda mais vergonhoso. Com 75% das urnas já apuradas, ou seja, já bastante avançada, Romney estava 3% na frente.

Porém não havia entrado nem 10% dos votos dos tais subúrbios da capital. Quando eles entraram em peso, finalmente após 6h de encerrada a eleição, Obama virou rapidamente e com 90% apurados, ele já estava 1% na frente e a CNN estava pronta para decretar sua vitória.

O que me assustou é que quem conhece a história eleitoral brasileira sabe que foi exatamente esse tipo de manipulação que foi tentado aqui no Rio de Janeiro na eleição de 1982 para governador. O famoso “Caso Proconsult”.

Os votos da capital (que tinha mais da metade da população e era brizolista) não entravam de jeito nenhum, enquanto o interior (em tese de mais difícil apuração e mais tendente a Moreira Franco) praticamente já tinha encerrado a apuração.

De qualquer forma, se houve tentativa de manipulação, nem lá nem cá deu certo.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

História e Outros Assuntos - "Ditadura, história, memória e o conceito polissêmico de 'Democracia'”



Nesta quarta feira pré feriado, a coluna “História e Outros Assuntos”, do Mestre em História Fabrício Gomes, analisa o conceito de democracia na ditadura militar brasileira a partir das considerações do professor Daniel Aarão Reis.

O colunista, a propósito, é autor do livro "Sob a sombra das Palmeiras: o ISEB, os militares e a imprensa (1955-1964)", que pretendo resenhar proximamente e que pode ser comprado aqui.

Ditadura, história, memória e o conceito polissêmico de “Democracia”

Na quinta-feira (08/11/2012) tivemos mais um debate sobre a ditadura, desta vez com Daniel Aarão Reis, professor titular de História Contemporânea da UFF e doutor em História pela USP, que levou o tema “Ditadura, história e memória” à discussão com o público - que lotou o auditório da Livraria da Travessa, no Shopping Leblon.

Em certa altura o debate esquentou e aconteceram acaloradas argumentações por parte de algumas pessoas – o que é normal, em se tratando desse tema. Tradicionalmente suscita polêmicas tanto entre aqueles que são interessados pelo assunto, como também por quem vivenciou intensamente o período do regime de exceção – a favor ou contra a ditadura.

 Para Daniel Aarão, em tempos de Comissão da Verdade, quando após mais de 30 anos do início do recrudescimento da democracia, é importante não somente que os “esqueletos” saiam dos armários, como também seja analisada e discutida a memória que a sociedade brasileira elaborou sobre a ditadura – idéia já levantada pelo próprio professor no livro “Ditadura militar, esquerdas e sociedade”, de sua autoria.

Entretanto, ele próprio admite que o termo “ditadura militar”, atualmente, é ultrapassado, já que pesquisas no campo da história apresentam comprovações de que a sociedade civil – ou pelo menos órgãos civis importantes – como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entre outras - também estiveram ao lado dos militares na guerra contra aquilo que chamavam de “subversão”.

Nota do autor: na verdade, naqueles tempos de Guerra Fria, com a bipolarização entre duas potências mundiais, bastava ser nacionalista para ser chamado de comunista.

Diferente do que falou o ex-guerrilheiro Carlos Eugênio Paz (“Clemente”) no mesmo ciclo de debates, Daniel Aarão não considera que a Associação Brasileira de Imprensa deva ser incluída nesse rol. Para ele, esta teve um papel ambivalente de participação: ora apoiando, ora lutando contra a ditadura. Por isso, Daniel Aarão ressalta que, se pudesse, mudaria o nome do livro para “Ditadura civil-militar, esquerdas e sociedade”.

Ao definirmos o período apenas como “ditadura militar” (saturado de memória, que fique bem claro) deixamos de lado importantes segmentos e instituições civis daquele período. Afinal, como se portavam essas pessoas? E ao definirmos como “ditadura civil-militar”, não subestimamos o protagonismo militar


Um claro exemplo da participação civil foram as ‘Marchas da Família com Deus pela Liberdade’, que arrastaram um número estimado de quinhentas mil a um milhão de pessoas, em média - nas grandes cidades e cidades de médio porte.

Marchas que tiveram início em 19 de março de 1964 – dia 19 de março, dia de São José, padroeiro da família, em São Paulo, numa clara resposta ao emblemático comício da Central do Brasil realizado em 13 de março daquele ano. Um momento importante da nossa história contemporânea brasileira, muito pouco estudado, que carece de publicações que analisem os episódios.

Nota do autor: há um importante trabalho escrito sobre o tema: a dissertação de mestrado em História Social “As marchas da família com Deus pela liberdade e o golpe militar de 1964”, de Aline Alves Presot, defendida em 2004, na UFRJ, porém, ainda não publicada.


Que sociedade era aquela, que fez chuva de papel picado nas coberturas da Avenida Atlântica, no dia seguinte ao golpe civil-militar? E que anos depois foi às ruas pedir pela Anistia? Nem todos, é verdade.

E as esquerdas, que lutavam contra o regime mas que no fundo, queriam substituir uma ditadura (capitalista) por outra (proletária e socialista), e que anos depois, já no alvorecer dos anos 1980, dizia ter pego em armas e ido à luta em prol da democracia?

Ambivalências... batalhas de memória... A zona cinzenta (conceito elaborado por Pierre Laborie) da sociedade permanece obscura, portadora de memórias subterrâneas e silenciosas, que persistem em se ofuscar pela memória coletiva e oficial. O penser-double, que ora apóia, ora rechaça a ditadura – e em muitos casos, é indiferente ou nada sabe sobre o processo político de um país, ainda hoje pode ser visto em nossa sociedade. Contrariando o que muitos pensam, o brasileiro não é desmemoriado: apenas mantém uma memória silenciosa.
 
O período vivido entre 1968 e 1974, que coincidiu com os governos de Costa e Silva e Garrastazu Médici, teve início com a implementação do Ato Institucional número 5 (AI-5), que concedia poderes extraordinários ao presidente da República e suprimia as garantias constitucionais até então estabelecidas. Este se estendeu até o início da distensão lenta, gradual e segura, verbalizada pelo “alemão” Ernesto Geisel – um general de poucas palavras.

O período foi considerado, pela historiografia, ao longo dos anos, como “Anos de Chumbo”: o endurecimento do regime, com o acirramento no combate à luta armada. Mas como explicar o alto índice de popularidade de Garrastazu Médici, ovacionado no estádio do Maracanã, numa das incontáveis comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil, em 1972?

Para Daniel Aarão Reis, os anos de chumbo também foram “anos de ouro”, já que havia o “milagre brasileiro”, um período de grande concentração de renda e desenvolvimento da sociedade, coincidindo com o exacerbado sentimento patriótico e ufanista, que adquiriu novos tons com a conquista da terceira copa do mundo pelo escrete canarinho de Pelé, Gérson, Tostão & Cia.

Há portanto, um intrincado sistema de relações complexas, estabelecidas entre a ditadura e a sociedade e negar isso é reduzir a discussão ao ultrapassado raciocínio de que houve o regime militar opressor de um lado e as vítimas civis que sofreram com o golpe.

Esse tipo de pensamento não é privilégio nosso: a idéia de que a sociedade francesa resistiu bravamente ao nazismo é equivocada. Constitui questão problemática discutir, na Alemanha, as relações da sociedade com o nazismo. Um operário que ajudou a construir o campo de concentração de Auschwitz, não sabia o que estava fazendo e, principalmente, para que fim serviria a obra? Intelectuais colaboracionistas franceses eram alienados e “malvados” quando aderiram às idéias nazistas, no regime comandado pelo Marechal Pétain?

Que sejamos, contudo, bem claros: não se trata de uma tentativa de caça às bruxas, apenas de contextualizar o período, sem contudo cairmos na hipocrisia reinante da seletividade da memória – tão comum quando regimes totalitários caem e de uma hora para outra, a sociedade é em seu ínterim vitimizada.

A contextualização histórica, portanto, é fundamental quando, por exemplo, discutimos a questão da luta armada no Brasil, que se pautou por duas grandes referências: uma internacional e outra interna.

A referência dos vários processos vitoriosos de luta armada que ocorriam no mundo – exemplo das revoluções em Cuba (1959), na Argélia (1962) – e outras ainda em curso, como no caso exemplar do Vietnam. Uma profusão de narrativas de lutas elaboradas sob o ponto de vista de seus líderes, produto de ações heróicas protagonizadas por grandes nomes – se esquecendo, entretando, dos anônimos – instituições e pessoas – que também deram importantes contribuições para o estabelecimento de novos regimes.

O exemplo cubano é emblemático e adquiriu tonalidades épicas, pois a memória foi construída por um grupo de revolucionários sobreviventes ao trajeto feito pelo Granma até Cuba, com poucos sobreviventes que durante dois anos se embrenharam pelas matas de Sierra Maestra e marcharam vitoriosos após a fuga do ditador Fulgêncio Batista.

A mancha de óleo que se alastra pelo país ignora, portanto, que talvez sem a participação de grandes segmentos, de organizações poderosas (não sob o ponto de vista econômico, mas participativo – o Movimento Revolucionário 26 de Julho, por exemplo) e principalmente, sem a simpatia e adesão da população cubana interiorizada, La Revolución poderia não ter acontecido.

A outra referência para o projeto de luta armada é coisa nossa mesmo e contrasta com a idéia de que a luta armada é produto somente de jovens românticos que, com armas nas mãos, queriam mudar o mundo. Um grupo de brasileiros, oriundos principalmente da economia, da sociologia e intelectuais, acreditava que era chegado o momento do impasse: ou o Brasil fazia as reformas necessárias ou o país viraria um barril de pólvora, num processo de radicalização sem fim. Afinal, as direitas não apresentavam nenhuma perspectiva de mudança.

Nesse contexto, com o acirramento de tensões no cenário político e econômico mundial, representado por dois atores globais – EUA e URSS, a resistência à luta armada já começara antes, com as Ligas Camponesas, de Francisco Julião, com o trabalhismo brizolista, entre outros. Com as eleições de 1962, a Câmara teve uma composição anti-reformista, em sua maioria, o que promoveu mais ainda o conflito interno.


Portanto, as ações armadas no pré-1964, embora quisessem romper com o passado e serem uma nova esquerda, têm laços profundos com o que veio antes do golpe. Queriam mudar o mundo, e ao partir para o enfrentamento, acreditavam na utopia do impasse.

É equivocado o pensamento de que o Ato Institucional número 5 (AI-5) tenha sido feito para atingir a luta armada e a sociedade que se encontrava em oposição ao regime. O endurecimento da ditadura foi, segundo Daniel Aarão Reis, produto de outro movimento, feito para enquadrar os setores dissidentes da elite dominante – uma rebelião na Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que se negou a aprovar o processo contra o jornalista Márcio Moreira Alves.
Outra questão espinhosa surge então, sempre que é debatida: afinal, pelo que lutavam as esquerdas envolvidas nas ações revolucionárias?

Na contramão das definições simplistas sobre o conceito de “Democracia”, alguns se apressam em dizer que buscavam a substituição de uma ditadura por outra – de cunho proletário e socialista.


Mas é preciso compreender que Democracia é um conceito polissêmico, e principalmente contextualizar que a democracia que a luta armada almejava desconhecia o que o regime cubano faria depois, por exemplo – embora, nesse sentido, os regimes totalitários conhecidos até então não proporcionassem referências democráticas.

Em um primeiro momento, podemos destacar a distinção entre os modelos de “Democracia Formal” e “Democracia Substancial”: enquanto o primeiro ressalta a importância do cumprimento e respeito às regras, o segundo diz que o que interessa não são as regras a respeitar e sim os fins que irão gerar a igualdade social.

É mister o exercício de se tentar pensar com a cabeça de um jovem guerrilheiro na época, que acreditava nas revoluções que explodiam pelo mundo e que – pasmem! – dava certo! Como impedir isso? Havia sim, um sentimento de que era necessário destruir, primeiro a ditadura, e depois o sistema capitalista então vigente.

Nas eleições de 1970, a sociedade começou a dar sua resposta ao regime vigente: embora a ARENA permanecesse com grande votação, liderando as eleições, os votos em branco/nulo vieram em seguida, ultrapassando o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Aquele ano reflete, portanto, uma sociedade descrente – não na economia, mas no regime político.



Daniel Aarão Reis analisa que o período pós-1964 é “saturado de memória”, de querer apresentar uma esquerda revolucionária como democrática. Discordo em parte do professor, pois, como já expliquei acima, a idealização de “Democracia” que temos hoje é distante da que existia há mais de 40 anos – e mesmo assim, as esquerdas eram motivadas pelo conceito de democracia substancial.

É possível que surja a argumentação de que “nenhum dos regimes revolucionários vitoriosos tinha pluripartidarismo, tribunais isentos etc”. Mas cabe novamente a pergunta: nos anos 1960, existiam essas definições, que hoje temos mais claramente definidas?

Em tempos de Comissão da Verdade. Se por um lado, devemos nos abster de revanchismos e “caça às bruxas” do período, por outro é necessário contextualizar o período, sem maniqueísmo e não nos deixar cair nas tentações culpabilizantes (e saturadas de memórias) de que o significado de “democracia” atual seja o equivalente da democracia que a luta armada – e também todos os que foram contrários ao regime ditatorial – almejavam.

Nós, historiadores, não devemos produzir uma história “vigiada” e sim procurar as evidências – e justamente por isso, sermos imparciais


domingo, 11 de novembro de 2012

Orun Ayé - "Uma viagem ao interior do país"



Neste domingo, a coluna “Orun Ayé”, do compositor Aloísio Villar, conta um pouco da experiência do colunista quando viveu no interior do Mato Grosso na década de 90.

Uma viagem ao interior do país

Duas coisas ocorreram de domingo para cá que me fizeram ter a idéia de escrever essa coluna agora. Desde fevereiro estou pra escrever esse texto, mas sempre pintava algum assunto e deixava pra lá, mas com esses dois acontecimentos vi que é a hora certa.

A primeira foi a vitória no Boi da Ilha domingo passado. A minha sexta vitória na agremiação, que me garantiu a honraria de ser o segundo compositor de mais vitórias na escola que é o maior celeiro de talentos do bairro. O Boi já foi casa de compositores do quilate de Didi, Aroldo Melodia, João Sergio, Bujão, J.Brito, Carlinhos Fuzil, Mauricio 100 e Marquinhus do Banjo, entre outros.

Além dessas seis vitórias tenho três conquistas em sambas de terreiro, um estandarte de ouro, um troféu Jorge Lafond e um Prêmio S@mba-Net mostrando meu valor como compositor.

Outro fator ocorre nesse instante, onde vejo a Globonews esperando o discurso de Barack Obama reeleito presidente dos Estados Unidos (a coluna foi escrita na noite da última quarta feira). Vendo as nuances eleitorais americanas, todo o seu diferencial sobre o qual falei por alto em coluna retrasada e o Rafael Rafic abordou brilhantemente em duas colunas (inclusive acertando o resultado final). 

Samba? Política? Endoidou Aloisio? Fumou maconha? O que isso tem a ver com essa coluna?

Tem a ver que virei compositor e entrei para a política vinte anos atrás, quase ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Barra dos Bugres.

O que é Barra dos Bugres? Explico, ou melhor, a Wikipédia explica.

É um município brasileiro do estado de Mato Grosso. Localiza-se a 15º04'21" de latitude sul e a 57º10'52" de longitude oeste e está a 171 m de altitude. Possui uma área de 7.186,78 km² e sua população estimada em 2007 é de 32.479 habitantes.

Situa-se a 150 quilômetros da capital Cuiabá, no encontro entre o rio Bugres e o rio Paraguai e seu nome deriva da barra formada pelo rio Bugres ao desaguar no rio Paraguai. O mais importante evento da cidade é o Festival Regional de Pesca de Barra do Bugres (FestBugres), e que em 2011 se transformou em FIP - Festival Internacional de Pesca, atraindo turistas de outros estados e de outros países como Estados Unidos, Colômbia, Peru, entre outros.

No município está situado o Campus Universitário Deputado Renê Barbour, da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT), que conta com cinco cursos de graduação (Arquitetura e Urbanismo, Ciência da Computação, Engenharia de Alimentos, Engenharia de Produção Agroindustrial e Matemática).

Possui também uma turma especial de Direito e ainda conta com o Projeto 3º Grau Indígena – Primeiro da América Latina: Formação Superior de Professores Indígenas. E lá fui parar em fevereiro de 1992.

Uma amiga de minha tia fez prova para ser juíza no Mato Grosso e passou, acabou que nessa minha mãe virou secretária dela e paramos lá.

Eu, carioca acostumado com megalópole, trânsito, modernidade, parei numa cidade onde aos domingos a luz era cortada por motivo de economia.

Barra dos Bugres tem uma população do tamanho de meu bairro e quando digo meu bairro não é a Ilha do Governador: é meu bairro dentro da Ilha. O choque foi muito grande, mas aos poucos fui usando aquilo a meu favor.

No Mato Grosso terminei um processo que começara fazendo teatro na escola dois anos antes. O de me soltar, ser menos tímido. Virei celebridade na cidade por ser carioca e até RG tive que mostrar a fim de provar onde nasci.

O fato de a cidade ser pequena, todos se conhecerem e ir a pé a todos os cantos me fez interagir mais. Eu sempre fui um cara calado, introvertido, caseiro e lá conheci a noite, festas, baladas: características que seguiram por minha vida e fiz amigos por toda existência.

Aos poucos o carioca que tomou um choque cultural foi gostando da cidade de uma forma que não queria mais voltar ao Rio de Janeiro. Ali me conheci, alcancei a liberdade e conheci essas duas características de minha vida que citei no início da coluna.

Lá em Barra dos Bugres pela primeira vez concorri em algo como compositor. A escola que eu estudava decidiu criar um hino e deu essa incumbência aos alunos. Eu sempre gostei de escrever e vi ali pela primeira vez a chance de escrever pra outras pessoas verem.

E enquanto todos preferiram um ritmo mais de raiz, mais a ver com a cidade eu fiz um samba, o primeiro da minha vida.

Aprendi duas lições importantes nesse concurso.

A primeira é que hino em ritmo de samba só serve para clube de futebol e mesmo assim feito por Lamartine Babo.

A segunda e a mais importante: logo depois do resultado um professor chegou a mim e disse que eu tinha a melhor letra do concurso, mas não podia cantar de forma alguma.

Sem ter ninguém pra cantar eu subi ao palco e defendi o meu samba. Eram nove músicas inscritas e os fdps fizeram questão de anunciar do nono ao primeiro e dar placas pela participação.

Fiquei em nono.

Minha apresentação foi um desastre. Realmente não sou nenhum Frank Sinatra, mas consegui ser pior do que sou normalmente tentando cantar samba com um garoto de cabelo “Chitãozinho & Xororó” tentando me acompanhar no teclado em ritmo sertanejo. Quando fui anunciado em nono lugar fiquei com vergonha e não queria receber a placa. Mas foram atrás de mim e me convenceram a entrar no salão e injuriado agradecer por ter ficado em último.

Graças a Deus não lembro mais a letra e não preciso postar aqui. Mentira, lembro sim, mas não postarei. Tenho um nome a zelar.

O concurso foi ganho por um grupo chamado “Os filhos do sapateiro”, o mesmo grupo do garoto com cabelo “Chitãozinho & Xororó” e por dois anos tive que irritado ouvir esse hino todas as manhãs e nos eventos festivos.

Nunca mais ouvi falar nos “Filhos do Sapateiro”. Eu decidi continuar escrevendo e compus 92 sambas de enredo chegando a 57 finais, 28 vitórias e ganhando cinco prêmios, três no carnaval carioca e dois no de Cabo Frio. Chupem, “sapateirinhos” (risos).

Mas queria ter ganhado aquele concurso.

Lá aprendi a perder e ganhar. Com uma semana de aulas tal era o frenesi por ser do Rio que ganhei eleição para representante de turma. Algum tempo depois virei presidente do Grêmio Estudantil e da Entidade Municipal de Estudantes.

Criamos a carteirinha estudantil na cidade que dava direito a meia entrada em shows, boates e fizemos convênio com o comércio que dava descontos na apresentação da carteirinha.

Fizemos festas, arrecadamos dinheiro, eventos esportivos, briguei a beça com direção da escola, com turmas que não quiseram respeitar a lei da meia entrada em seu baile pra formatura. Me filiei a partido político e trabalhei nas eleições de 1994.

Lá vi um pouco da “podridão humana”. Vi gente que falava uma coisa e agia de outro modo, vi roubalheira em apuração, o voto de cabresto, o coronelismo. De cédulas com votos dados por semi-analfabetos, que como “por milagre” alguns entendiam e contavam como voto para o coronel local se eleger deputado estadual. Alguns desses votos só com a primeira letra de seu nome e já entendiam que era para o coronel.

Impressionante!!

Conheci a prática de entregar uma cédula para o pobre eleitor já com o nome escrito. Ele entrava, pegava a cédula em branco do mesário, botava na urna o voto marcado anteriormente e entregava pros “capangas” do coronel a cédula em branco dada pelo mesário.

Claro que ele se elegeu deputado e muitas vezes. Copiando a wikipédia pra cá vi que ele virou nome de Campus, procurei mais no google e descobri que ele morrera, vi reportagem da época com outros políticos lamentando e lhe chamando de “reserva moral”.

Que essa “reserva moral” esteja no colo do Capeta.

Apesar dessas coisas Barra dos Bugres é formada por gente de bem, batalhadora, onde vivi momentos inesquecíveis. Minha primeira vez foi lá, uma das paixões mais fortes também, também foi no Mato Grosso que trabalhei pela primeira vez abrindo um fliperama com minha mãe, me formei no segundo grau em magistério e tive que explicar pra crianças de oito, nove anos a morte de Ayrton Senna num dia 2 de maio de 1994.

Nadei no rio, andava tranqüilamente de madrugada pela rua, terminava minhas noites num forró que só tinha velhos e começava a manhã na padaria. Fui muito feliz.

[N.do.E.: tenho de admitir que estou rindo horrores aqui enquanto edito a coluna imaginando o colunista nadando em rio...]

Mas uma hora teria que ir embora. Infelizmente na época a cidade não permitia crescimento. Acabava o segundo grau e ao jovem adulto não restava outra coisa a não ser se casar, ter filhos e receber um parco salário até o fim da vida.

E também lá minha mãe foi violentada depois que fechou um bar nosso, por uma figura conhecida da cidade. Nada aconteceu com o cara por receber proteção dos dominantes locais. Ele não só foi protegido como nós que achamos prudente ir embora para que não houvesse nada a mais contra ela, além das ameaças que já recebia.

Não há provas, mas a hepatite que virou cirrose e matou minha mãe pode ter vindo da cidade, dos banhos de rio ou do estupro. Soube um tempo depois que o tal cara virou evangélico e depois que estava doente. Não desejo mal a ninguém, mas que esteja no colinho do capeta junto com o coronel.

Apesar dos pesares tenho muitas saudades de Barra dos Bugres e de vez em quando sonho com a cidade, como na última noite e os sonhos nunca são ruins.

O adulto Aloisio Villar foi formado lá com todas as suas características. O boêmio, sambista, politizado e que não é mais tão tímido e consegue se ambientar em circunstâncias diferentes a que está acostumado.

Vinte anos se passaram, muita coisa mudou, mas devo muito a Barra dos Bugres e ela também deve a mim.

Um dia volto à cidade e essa dívida é paga.

Mas sem que eu precise cantar... Orun Ayé!

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

História e Outros Assuntos - "Memórias de um guerrilheiro: Carlos Eugenio Paz, o Clemente, e a luta armada (1966-1973)"



Excepcionalmente nesta quinta, a edição extra da coluna “História e Outros Assuntos”, assinada pelo Mestre em História Fabrício Gomes, traz revelações surpreendentes e exclusivas sobre a resistência armada à ditadura militar, contadas por um de seus sobreviventes.

Memórias de um guerrilheiro: Carlos Eugenio Paz, o Clemente, e a luta armada (1966-1973)

“Sobrevivi para contar a história”.

Assim Carlos Eugênio Paz – codinome “Clemente” -, resume sua trajetória de vida, desde quando entrou nas fileiras da resistência à repressão, aos 15 anos, após ser aceito por Carlos Marighella na Ação Libertadora Nacional (ALN) para lutar contra o regime de exceção.

Seu pai era admirador do integralismo de Plínio Salgado – “Ele sonhava que eu fosse estudar Engenharia Eletrônica na Alemanha e voltasse ao Brasil com um Mercedes Benz pra ele”. Sua mãe era comunista e admiradora de Luís Carlos Prestes, e dois anos antes ele já ajudava os amigos de sua mãe, que fugiram da sede da UNE, após esta ser incendiada.

Na época, morava em Laranjeiras e muitos que eram considerados “subversivos” dormiram escondidos em sua casa. Pertencia a uma classe média que almejava ser elite. “Elite é uma palavra que é interpretada de forma errada. Meu pai queria que eu estudasse e pertencesse à elite. Mas tive uma professora que foi muito feliz em definir o que de fato significa elite. Elite é o que há de melhor, não aquilo que tem mais dinheiro, não o que é dominante. Elite é Cartola, é Garrincha, é ter educação, é gostar de ler, por exemplo”.


 
O relato de Carlos Eugênio Paz aconteceu nesta terça (06/11/2012), como parte integrante da Oitava Quinzena de Literatura Latino-Americana, que acontece na Travessa do Leblon e tem a ditadura como tema principal este ano.

O codinome Clemente surgiu de uma provocação de um amigo, em 1966, quando o rubro-negro Carlos Eugênio Paz sofria com a derrota do seu time para o Bangu (o Flamengo perdeu por 3 a 0 para o Bangu, num jogo em que Almir Pernambuquinho, do time da Gávea, arrumou briga generalizada em campo). Um zagueiro do Bangu, que havia jogado muito bem naquele dia, se chamava “Ari Clemente”. Vem daí o codinome.

Hoje, aos 61 anos, Clemente – vamos continuar a chamá-lo assim - é professor de música – chegou a dar aulas numa creche, no Rio de Janeiro – e tem uma definição bem clara dos dias conturbados que antecederam e precederam o golpe: “Foi uma partida de futebol onde a direita da sociedade compareceu e a esquerda perdeu de W.O.”

E arremata: “A esquerda não preparou a resistência, faltou ao encontro”. Decerto, foi uma luta desigual, já que as principais organizações de resistência ao novo regime – Ação Popular, Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP) e PCB/PCdoB – não estiveram coesas e preparadas para resistir e lutar em conjunto.

Prejuízos decorrentes do golpe de estado de 1964? Para Clemente, muitos.

Não foram apenas a locupletação dos militares, as mortes, as torturas e os desaparecimentos, mas principalmente as reformas de base que deixaram de acontecer e que alavancariam o país ao progresso, e por isso, o país paga até hoje esse insucesso. Jango tinha 58% de popularidade – e isso não era, na época, pouca coisa. “Havia um mito de que todo o país estava contra Jango e isso não era verdade. Imagine o que seria o Brasil se o governo de Jango tivesse continuado?”
 

Entre o integralismo do pai e o comunismo da mãe, Clemente deixou-se fascinar pela liberdade. O contato com Marighella, em 1966, deu-se através de Alex de Paula Xavier, seu melhor amigo. Alex era filho de João Batista e Zilda de Paula Xavier Pereira – comandantes regionais da ALN e comunistas militantes do PCB.

Chama a atenção um fato citado por Clemente: “Os comunistas estavam divididos. Muitos criticavam a postura do PCB, como um partido que estava eternamente querendo fazer uma revolução e não fazia. Os anos passavam e nada acontecia. Aí se organizaram grupos simpatizantes e um deles chamávamos de ‘Grupo Marighella do PCB’”. “Imagine um dirigente como Marighella, já com quase 60 anos e respeitado por toda a luta armada, conversando com um fedelho como eu? Isso demonstra a magnitude dele, e seu diferencial era justamente esse: saber ouvir a todos”.

Marighella ouviu tudo que Clemente tinha a dizer. E sugeriu algo inimaginável ao jovem rapaz de 15 anos: “Ele propôs que eu me alistasse e servisse no Forte de Copacabana. Ele queria que eu me formasse militar, justamente para pensar como um militar, dentro da ALN, de forma que em todas as nossas ações, ponderasse com a cabeça de um militar”.

O ex-guerrilheiro cumpriu a ordem à risca e por ironia do destino chegou a ser condecorado com uma medalha pelos serviços prestados na guarnição. “Minha rotina era simples: servia no quartel, nas folgas saía pra rua e praticava as ações de guerrilha. Depois voltava pro quartel e tudo seguia normal.

Numa das vezes, após ganhar a medalha resolvi provocar os companheiros de luta, mostrando a medalha. Mas imediatamente joguei ela num bueiro, na Av. Princesa Isabel, e disse a eles: ‘Essa medalha pra mim não vale nada, porque meu verdadeiro exército é o de Carlos Marighella’.

Com a separação de seus pais, Clemente recrutou a própria mãe para a luta armada: Maria da Conceição Sarmento da Paz, codinome “Joana”, foi fazer treinamento de guerrilha em Cuba e depois cursou enfermagem nas melhores escolas de Havana


“Mamãe nos foi muito útil, pois depois trabalhou em duas “clínicas” que tínhamos em São Paulo para atender companheiros nossos, feridos em combates”. O ex-guerrilheiro acrescenta um dado impressionante: “Em junho de 1974 ela infelizmente ‘caiu’ (Nota: ‘cair’ era um termo utilizado pela guerrilha, na época, que significava que o companheiro tinha sido preso pela repressão) e foi barbaramente torturada durante um mês, pessoalmente pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury – policial que comandava a Operação Bandeirantes (OBAN) e temido por todos.”

“Mesmo torturada e sabendo que eu já me encontrava fora do Brasil (Clemente se exilou na França de 1973 a 1981), podendo dizer isso, ela negou informações aos torturadores”. Anos depois, já de volta ao Brasil, Clemente questionou esse fato a ela e a resposta foi direta: “Uma mãe jamais entrega o filho”.

Mas quem apoiava o golpe de estado? Quais as forças da sociedade que comungavam com o regime?

Clemente não pensa duas vezes e diz: “A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Igreja Católica e o empresariado nacional, compactuados com os EUA ‘pediram’ o golpe aos militares. Agora que temos uma Comissão da Verdade, é chegada a hora de assumirmos as nossas verdades”.

Complementa: “Essas mesmas instituições que citei, hoje posam como democráticas, defensoras dos direitos humanos, mas 30, 40 anos atrás, não faziam isso”.

A ALN existiu organicamente de 1966 até dezembro de 1973. Chegou a ter cerca de 15 mil combatentes, espalhados por todo o território nacional.

Clemente faz um testemunho importante: “Ao verificarem que existia, sim, uma resistência, os militares centralizaram a repressão na OBAN, que era mantida através de uma ‘caixinha’ que circulava entre os maiores nomes do empresariado nacional. Nomes como Amador Aguiar, do Bradesco, e Octávio Frias de Oliveira, do Grupo Folha, eram vistos nessas reuniões. E você sabe onde essas reuniões aconteciam? Na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP)! E o ministro Delfim Neto comparecia a quase todas essas reuniões!”.


Ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, Antonio Delfim Neto se orgulhava de ter promovido o “Milagre Econômico”, que nada mais era, na verdade, do que o arrocho aos salários dos trabalhadores e o lucro dos empresários. Mas porque então a OBAN era subsidiada pelos empresários e não pelo governo, que detinha a “máquina” e poderia jorrar recursos para aquela organização quando bem entendesse?

Clemente é direto na resposta: “A OBAN foi uma tentativa de comprometer o empresariado, no estilo: ‘OK, demos o golpe, agora é com vocês’.

Um renomado empresário era destaque nessas reuniões, justamente a pessoa responsável em passar a ‘caixinha’ entre seus colegas: Henning Albert Boilesen, um empresário dinamarquês, presidente do Grupo Ultragaz, que vendia botijões de gás nas residências paulistanas.

No documentário “Cidadão Boilesen”, de Chaim Litewski, o empresário é apresentado como uma pessoa com personalidade doentia, desde a infância. Tanto que uma das diretoras da escola onde estudou apresenta as anotações feitas em seu boletim, que informavam que ele tinha prazer em ver o sofrimento dos amigos.

Clemente conta que a ALN tinha informantes “do lado de lá” (na repressão) também e que todas as fontes informavam que “um cidadão bonito e elegante, que não era militar, se juntava às vezes a sessão de tortura, fosse para assistir ou então participar – geralmente queimando partes dos corpos dos presos com uma barra de ferro usada para marcar gado”.

As práticas de tortura, por sinal, variavam bastante: “Alguns de nossos companheiros sofreram com a chamada ‘Coroa de Cristo’, uma estrutura circular, cravejada de lanças de ferro pontiagudas, colocadas na cabeça dos presos e apertadas manualmente pelos torturadores, que chegavam a explodir o crânio dos companheiros”. Clemente faz hoje uma distinção bem clara sobre o que pensava da tortura: “Uma coisa que eu respeitava era o combatente – podia ser o repressor ou nós. Mas a tortura eu não respeitava, porque não era uma prática decente, era injusto e desigual”.


Como então se deu o envolvimento da ALN com o “justiçamento” de Henning Boilesen?

“Sabendo da ligação de Boilesen com o financiamento da OBAN – reparamos que a Ultragaz inclusive cedia seus veículos para as ações de repressão - e sua participação nas sessões de tortura, tínhamos a intenção de sequestrá-lo, negociando sua liberdade em troca de presos políticos que estavam confinados.

No entanto, faltando cinco dias para nossa ação, em 5 de abril de 1971, Devanir José de Carvalho, codinome “Henrique” - um de nossos companheiros - caiu, e sob tortura, informou à repressão nossa intenção de seqüestro”.


Eram tempos difíceis e a repressão já mandara um recado à direção da ALN: “Qualquer dirigente ou membro da ALN que fosse preso, mesmo colaborando conosco, não sairá vivo”. Sem dúvidas, uma política de extermínio. “Devanir foi torturado até a morte e depois de morto, seu corpo foi pendurado pela nuca num garrote de açougue, na sede do DOPS, como troféu”, confidencia, emocionado, Clemente.

Nesse momento, então, a ALN resolveu “justiçar” a morte de seu companheiro de luta, assassinando Henning Boilesen. A programação era acompanhar e estudar seus passos por alguns dias e matá-lo na primeira oportunidade.

É comum, atualmente, na tentativa de se romantizar o passado, imaginar que tanto as ações de repressão e principalmente as ações de guerrilha aconteciam perfeitamente, sem contratempos. Não foi o caso da programação do assassinato de Boilesen.

“Sabíamos que ele ia visitar o filho e seu trajeto para chegar até a casa da ex-esposa. Só não contávamos que justamente naquele dia ele iria se atrasar. Um companheiro nosso, Antonio Sergio de Matos, codinome “Uns e outros”, chegou até a brincar naquele momento, quando estávamos no carro nos preparando para a ação, dizendo ‘Pô, o cara é muito irresponsável mesmo, se atrasa até no encontro com a morte!” (“Uns e Outros” morreu alguns meses depois, numa emboscada feita pela repressão)”. “Naquele momento, nossos companheiros que estavam na ação, me perguntaram: ‘E agora? Continuamos?’



A palavra final foi minha: ‘Vamos em frente’.

Boilesen saiu da casa, dirigiu seu carro por algumas ruas e, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, foi morto pela ALN, com um tiro de fuzil na cabeça e oito tiros de metralhadora. A mesma Alameda Casa Branca onde, dois anos antes, Carlos Marighella foi morto pelo delegado Sergio Paranhos Fleury. Clemente jura de pés juntos que o fato do endereço da morte de Boilesen ser o mesmo da morte de Marighella, foi mera coincidência: “Foi acaso do destino”.

E porque a ação da guerrilha na luta armada gerou tantas antipatias, ao longo dos anos? Porque será que um guerrilheiro brasileiro, que pegou em armas, é visto até hoje com reticências se em comparação Che Guevara se transformou num mito romantizado de Nuestra America e mundialmente reverenciado pelos jovens?

“É porque é belo analisar os fatos à distância, é menos criticável, do que o que acontece em nosso país. A violência de “Che” era a mesma, você já leu o “Diário de Sierra Maestra”? Está tudo ali. Che amarrou uma pessoa numa árvore e deu um tiro na cabeça. E aí? Não foi igual?”.

Até hoje permanece obscuro um episódio ocorrido dentro da própria ALN: o justiçamento de Márcio Leite de Toledo, codinome “Márcio”, que era um dos comandantes da organização (Clemente era o Coordenador Militar). Clemente então esclarece o que de fato aconteceu:

“Marquei com o Márcio e o Joaquim Câmara Ferreira (codinome “Toledo” e uma das figuras mais proeminentes da luta armada, sucessor de Marighella na ALN e líder do seqüestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick) de encontrá-los num aparelho (Nota: “aparelho” era o nome dado pelos guerrilheiros a uma casa/instalação usada nas ações).

Na hora marcada, nenhum dos dois apareceu. Estranhei o fato. Passados 45 minutos me dirigi a um segundo aparelho (era de praxe ter endereços alternativos, de modo a confundir perseguidores). Nada. Pensei então que os companheiros haviam caído na mão dos repressores.”


Para Clemente, o mais difícil, naquele momento, foi a decisão de convencer os demais militantes da ALN, de continuar a luta, sem a liderança dos dois companheiros que tinham sumido. Com os olhos marejados, afirma: “Imagina você chegar pra uma pessoa e ‘pedir’ pra que ela siga com você na luta, estando sujeita a morrer a qualquer momento?”.

Dias depois, o sumiço de “Toledo” foi esclarecido: José da Silva Tavares, codinome “Vítor” (que anteriormente militara na Corrente - uma dissidência do PCB - e freqüentara um Curso de guerrilha em Cuba) fora capturado e levado para Belém, onde sob tortura entregou a localização do líder da ALN.

Não só entregou “Toledo”, como também mudou de lado e passou à condição de repressor – hoje, é um alto executivo da FIAT. “Toledo” foi preso, torturado e morto em um sítio clandestino pertencente ao delegado Sergio Paranhos Fleury.

[N.do.E.: de acordo com o site da Fiat do Brasil, José da Silva Tavares não ocupa mais o cargo de Diretor Financeiro da subsidiária brasileira da empresa.]

Passaram-se 42 dias até que “Márcio” aparecesse novamente para Clemente. “Fiquei surpreso em vê-lo vivo, como se nada tivesse ocorrido. Perguntei a ele o que tinha acontecido e me surpreendi mais ainda com a resposta”:

“Pensei que era hora de me preservar”, disse o militante sumido.

Segundo Clemente, “Não tinha outra coisa a fazer senão desligá-lo do comando da ALN. Mas aceitei reintegrá-lo como membro de luta, desta vez no grupo de fogo, responsável por portar a metralhadora e dar cobertura a outros companheiros nas ações que iríamos realizar”.

O ex-guerrilheiro novamente mostrou-se arrependido.

Na primeira ação que fizemos, ao ver a aproximação da polícia, o que fez “Márcio”? Jogou a metralhadora no carro e saiu correndo, deixando dois de nossos companheiros descobertos – mesmo após tiroteio, eles conseguiram sair vivos”.

“Essas atitudes dele foram consideradas suspeitas por todos nós. O companheiro estava vacilando conosco. Pensávamos que podia ter passado para o outro lado, da repressão. Então chamamos ele para uma conversa e propomos que ele saísse do Brasil, por seis meses, para qualquer destino – Europa, Cuba, Chile (na época Allende ainda era o presidente), que nós bancaríamos e depois de seis meses, ele poderia fazer o que quisesse da vida, poderia sair da organização. Considerávamos seis meses o tempo certo para que mudássemos as rotinas da ALN, de modo que ele não soubesse mais nossos segredos”.


Márcio não quis sair do Brasil. Mesmo com a proposta, bateu o pé e quis continuar na organização. “Aí realmente não tínhamos outra saída, senão decidir por seu justiçamento. Mas é importante esclarecer que não foi uma decisão apenas minha ou de três ou quatro pessoas. Consultamos as várias coordenações regionais da ALN até decidir a sentença. E coube a mim fazer o justiçamento”.

As memórias do período são muitas e intensas. A conversa com Clemente poderia render outros assuntos, confidencias e relatos. O ex-guerrilheiro afirma que se hoje ainda tivesse 20 anos de idade, faria as mesmas coisas, sem arrependimento. Segundo ele, lutava por uma “democracia” – hoje é difícil atribuir um significado a essa conceito, que pode gerar múltiplas interpretações. “Marcas de guerra todos temos. Marcas de arrependimento não”. Justamente por isso, ele se propôs a contar um pouco do período em que viveu e lutou pelos ideais que acreditava – e ainda acredita.

PS - em janeiro está programado o lançamento do documentário "Codinome Clemente", em DVD, da diretora Laís Albuquerque.