Antes de passarmos ao assunto do dia, peço desculpas aos
leitores pela ausência de textos de minha autoria nos últimos dias. Venho
enfrentando uma série de problemas pessoais, especialmente de ordem
profissional, e com diversos afazeres concorrendo por tempo.
Mas este Ouro de Tolo é plural, é uma construção coletiva e os
colunistas mantêm o pique com textos de alta qualidade. Certamente os leitores
não sentiram a menor falta dos posts de minha lavra.
Esclarecimento efetuado, vamos ao nosso tema de hoje,
feriado aqui no estado do Rio de Janeiro
20 de novembro, Dia Estadual da Consciência Negra.
Este feriado é comemorado marcando o aniversário de morte de
Zumbi dos Palmares, tido pela historiografia oficial como um dos grandes
mártires da luta pela liberdade negra. Pesquisas mais recentes indicam que o
Quilombo dos Palmares era mais semelhante à organização social africana que
propriamente um lugar igualitário, como transcrito e divulgado através dos
séculos.
Estas pesquisas mais recentes indicariam até que havia
escravos no Quilombo. Entretanto, não é este o ponto central de hoje.
Até porque lá se vão mais de quatro séculos...
Este texto de hoje, mais do que comemorar ou dissertar,
pretende refletir. Escrevi post sobre o assunto em julho a partir da observação
de que no colégio onde minhas filhas estudam praticamente não há negros em
posição de aluno ou pais de alunos – somente em posições empregatícias
subalternas. Contudo não pretendo retomar o mote daquele artigo, que pode ser visto neste link.
Oficialmente, os escravos foram libertados em 13 de maio de
1888. Mas as relações de trabalho, em especial aos mais pobres, à época pouco
se diferenciavam apesar da 'liberdade' conquistada. Na prática, houve alteração
na forma de organização de produção. Alguma liberdade, verdade, mas restrita.
A escravidão formal passou a ser a servidão pelo trabalho –
ou a falta de. Os baixos salários substituíram o documento de posse formal,
tornando tudo um mundo de “faz de conta”: o direito de ir e vir por parte dos
então escravos passou a ser limitado pela falta de recursos financeiros, grosso
modo.
No Brasil, o trabalhador só passou a ter alguma liberdade
após a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada no governo de Getúlio
Vargas. Neste momento havia uma movimentação mais livre por parte dos
empregados no sentido de transitar entre empregos diferentes, até porque os
Anos 50 e 60 foram as décadas do grande salto de industrialização brasileiro.
A evolução salarial e de emprego – a primeira
particularmente – foram bem afetadas no período da ditadura militar, com
políticas compressoras de salário e que aumentaram a concentração de renda no
país, Isso apesar do período conhecido como “Milagre Econômico”, onde o país
cresceu mas a renda não foi dividida.
Parêntese: chega a ser curioso ver o então Czar da Economia
Delfim Netto, que dizia “primeiro crescer o bolo da economia para depois
dividi-lo” hoje defendendo posições keynesianas no campo econômico e
social-democratas na política. Nos dois momentos históricos, com bastante
competência - sejamos justos.
Para o negro, em especial, o conceito de liberdade ainda
pode ser considerado bastante relativo. Quando vemos a sociedade e percebemos
que ainda hoje há extrema dificuldade de inserção nas camadas mais altas da
sociedade, notamos como ainda há muita coisa a ser feita, em que pese
progressos visíveis ocorridos na última década.
Vale dizer que material da revista inglesa “The Economist”,
reproduzido na revista Carta Capital há três semanas, aponta o Brasil como um
dos países que mais diminuiu a concentração de renda na última década. Esta
concentração é medida por um indicador denominado “Coeficiente de Gini” ou
“Índice de Gini” que, embora ainda tenha bastante a avançar, teve no caso
brasileiro evolução significativa na última década.
O sacrifício – ainda que simbólico - de Zumbi e outros
mártires da causa negra valeu a pena ?
Sem dúvida alguma, a cultura negra hoje é mais aceita que no
início do século passado. Contudo houve a necessidade de um processo de
aculturação, adaptação, mitigação de seus costumes, sua cultura e suas crenças.
Como bons exemplos deste fenômeno, podemos citar a religião
e o samba. Ambos passaram por um processo de aculturação - e, em certos casos,
de dominação e perda de controle sobre o fenômeno.
Por outro lado, lastima vermos, em pleno Século XXI, manifestações
de racismo latentes e explícitas. O preconceito é praga que não se findou. A
própria estátua de Zumbi aqui no Rio, volta e meia, é vítima deste estigma com
pichações e vandalismo.
Também escrevi no artigo anterior que o racismo no Brasil é
disfarçado, não explícito. E por isso mais difícil de combater, até porque a
fronteira entre o politicamente correto – que é outra praga – e o racismo é muito,
muito tênue.
A "consciência negra" deve ser empregada na luta
por oportunidades iguais, por empregos iguais, pela não-discriminação. Este é
uma luta de todos nós, brasileiros. Por outro lado o raciocínio de que a discriminação social no
Brasil é social, não de cor, é apenas parcialmente válido. Explico.
Sem dúvida alguma existe um preconceito de classe muito
forte, com uma parcela da sociedade adotando posições conservadoras, quase
fascistas, como reação à ascensão social da denominada “nova Classe C” – basta
ver alguns comentários que vem surgindo aqui mesmo em posts sobre política.
Contudo, quando observamos a composição das classes, o
percentual de negros nas Classes A e B é muito, muito menor que a observada nas
Classes D e E. Obviamente, como se percebe no início deste post, são condições
que ainda remontam aos tempos da escravidão e à herança advinda desta.
É curioso se perceber que junto à evolução econômica e
social ocorrida nos últimos anos percebe-se uma guinada conservadora por parte
da sociedade. Acredito que seja uma espécie de autodefesa daqueles que
ascenderam a fim de não perder o que conquistaram a duras penas.
Este raciocínio explica duas coisas: primeiro, o voto no PT
– existe a percepção de que a oposição defende os interesses econômicos dos ricos e da
elite, somente. Segundo, a guinada reacionária em temas como aborto,
homossexuais, direitos civis, liberalização do consumo de maconha e que tais –
“turbinada”, talvez, pela crescente mistura entre política e religião a que
assistimos hoje.
Acabei saindo um pouco do tema, mas a data de hoje é
importante para refletirmos se realmente nossa sociedade possui um mínimo de
igualdade entre negros e brancos e se realmente estamos combatendo esta praga
odiosa chamada racismo. Também é dia de celebrar a cultura negra, enaltecê-la e
divulgá-la em tudo de rico que tem.
Como fazia Candeia (1935-1978), grande compositor portelense
e árduo defensor da cultura negra – na foto, com Martinho da Vila em algum
momento da década de 70. Infelizmente Candeia partiu muito precocemente, vítima
de complicações causadas pelos tiros levados em uma briga de trânsito e que o
deixaram paraplégico anos antes. Mas sua luta e sua genial obra ficaram. Viva
Candeia e viva a cultura negra!
E já dizia o Salgueiro em 1989: "o Centenário não se
apagará".